Analyser[1]

Jean Molino·

 

 

Epistemologia/Método/ Reflexão

 

“Chegou o tempo dos Analistas”

“Nada é vaidade, para a ciência

Em frente! Grita o eclesiasta moderno...”

(segundo Rimbaud)

 

A análise musical existe: há revistas de análise musical, especialistas que a ensinam, congressos onde se reúnem para falar sobre isso. Sem dúvida é suficiente para a felicidade dos analistas, mas nem todo o mundo concorda.

 

Analisar é preciso?

 

Alguns objetarão que é inútil, até mesmo perigoso, analisar. Enquanto ficam neste princípio, eles têm razão, pois não se pode forçar ninguém a analisar, e a recusa deles chama a nossa atenção num fato banal, mas irredutível: pode-se viver e amar a música sem analisar, e há muito mais coisas na nossa relação vivida com a música em qualquer análise... Mas no momento em que o inimigo da análise começa a justificar a sua recusa, e desenvolver argumentos a fim de provar porque não é preciso analisar, a sua posição não é mais tão certa: ele aceita falar da música, ou seja, abandonar a sua redoma onde ele se refugia referindo-se somente ao seu prazer. Desde então, uma vez que ele se situa conosco no discurso, ele pratica a análise. Ele não escapa da dialética na qual Aristóteles já arrastava seu adversário da filosofia: se aceita-se a mediação do discurso, é que nós não refletimos no silêncio da violência, ainda temos que filosofar para provar a inutilidade da filosofia (Protreptique). Assim tomamos consciência da continuidade e da ruptura que existe entre a música e a análise: há, sem dúvida, uma experiência irredutível da música, mas esta experiência é impregnada de simbolismo, o que assegura a passagem natural da experiência para o discurso. A análise rompe com a experiência, mas ao mesmo tempo ela a prolonga; a análise é música continuada por outros meios.

Quem analisa?

 

Então é natural analisar, e todo mundo analisa à sua maneira – tanto por meio de um comentário que acompanha um julgamento de gosto, como por meio de um modelo formalizado – inclusive homens que pertencem às culturas das mais “primitivas” como comprovaram recentes trabalhos de etnomusicólogos, tal como Zemp e Feld. Mas ficaremos com a nossa cultura e há de se convir que temos muitas pessoas analisando, se a análise se apresenta – neste momento da nossa pesquisa – como o discurso ligado a um fato musical. Antes mesmo que se falasse em análise, o professor que ensinava a compor uma fuga era um analista, e em um século quantas variedades!

Há quem redija os guias de concerto para amadores, os professores de conservatórios, os teóricos tal como H. Riemann querem descobrir e formular as regras do discurso musical. Enfim, chegaram os especialistas da análise, eis uma mutação não muito antiga, cuja novidade devemos realçar. Até pouco tempo, os analistas eram guiados por uma finalidade externa: analisava-se para aprender melhor a escutar, tocar, e sobretudo, para aprender a compor. Emprestando um termo da hermenêutica religiosa e jurídica, falaremos que a análise era “aplicada”, devia ela, servir para guiar a recepção ou a produção de uma obra. Por um movimento que prolonga a evolução descrita por M. Weber[2], vimos nascer sob nossos olhos o domínio autônomo da análise musical. Inúmeros fatores contribuíram para esta evolução: existência de um corpo profissionalizado de especialista, extensão do campo musical, pressão das disciplinas próximas, etc. Mas o essencial é constatar que o objetivo teórico vence as outras e se torna independente: há mais de um índice no surgimento de revistas exclusivamente consagradas à análise (Music Analysis, Analyse musicale). Entende-se então as reticências frente a um gênero ou outro de análise , onde aparecem modos de pesquisas que rompem não só com a linguagem corrente, mas até mesmo com o saber codificado dos praticantes (é o caso por exemplo da harmonia): a análise está nas mão de puros especialistas da análise pura, e é então natural que a análise se torne cada vez mais sistemática, abstrata, e podemos até falar esotérica. É preciso dizer que estes novos estilos de análise não apagam os outros, mas simplesmente os deslocam.

 

O que é a análise?

 

Ficamos até o presente momento numa definição grosseira da análise, e só para dar uma idéia da amplitude do domínio e de sua variedade: a análise, como foi visto, é o discurso sobre a música. É necessário agora, sermos mais precisos e isolar, no que diz respeito ao discurso sobre a música, um campo mais restrito; definido por um objetivo específico, - que pode estar presente, de forma implícita ou explícita, nos mais diversos discursos. É este objetivo que corresponde ao próprio sentido da palavra análise, tal como é utilizada nas disciplinas científicas – análise química, análise econômica, etc. – A sua melhor idéia nos é dada por um texto de Descartes (Regra V des règles pour la direction de l´esprit)> “Toute la méthode reside dans la mise em ordre et la disposition des objets vers lesquels il faut tourner le regard de l’esprit, pour découvrer quelque verité. Et nous l’observerons fidèlement, si nou reduisons par degrés les propositions complexes et obscures à de propositions plus simples, et si ensuite, partant de l’intuition des plus simples de toutes, nous esseyons de nous élever par les mêmes degrés jusqu’à la connaissance de toutes les autres. (Tradução de Jacques Brunschwig). « Todo o método reside na ordem e na disposição dos objetos em direção aos quais devemos orientar o olhar do espírito para descobrir alguma vedade. Nós a observaremos fielmente se reduzirmos degrau após degrau as propostas complexas e obscuras em propostas mais simples, e se depois, partindo da intuição das mais simples de todas, tentamos nos erguer pelos mesmos degraus até o conhecimento de todas as outras » Podemos resumir este método em três princípios : divisão, simplificação, enumeração. O analista isola arbitrariamente um objeto do contexto infinito no qual ele se insere, ele procura unidades das quais faz o inventário e tenta construir um modelo do objeto graças a estas unidades e as regras de suas combinações . Parece simples, mas – como se diz – tinha que pensar nisso ; e tomou tempo para chegar até aí ; e o mais milagroso é de ver o quanto isto corresponde rigorosamente com a intenção profunda de todos os paradigmas atuais da análise musical. E para sugerir que ela está em boa, ou má – companhia gostaria de lembrar como um economista apresenta, ad usum delphini, sua análise : « the most economic question lead up to a discussion of what consequences may be expedted to follow a certain event. We have to proced by breaking the question up into parts, and after discussing each separately reassemble the pieces as best the way” (Joan Robinson, Exercise in Economic Analysis, Macmillan, 1960. pp. XVIII-XIX).” A maioria dos problemas econômicos conduzem à discussão das conseqüências que é susceptível de ter um dado evento. Não podemos isolar uma causa particular das circunstâncias do contexto por uma experimentação controlada (...). Temos que proceder dividindo o problema e depois de ter discutido cada parte separadamente, reunir os pedaços da melhor maneira possível.” O analista em todos os domínios constrói um modelo de seu objeto a partir da combinação de elementos. Com isso ele só explicita um procedimento natural que corresponde à questão incessantemente colocada pelas crianças: como é feito? Mas aqui surge uma ambigüidade por que esta questão pode ser interpretada de duas maneiras diferentes; como o produtor do objeto o fabricou? É desta maneira que procede o historiador – historiador da literatura ou historiador da música; o que o interessa é saber como Flaubert fabricou L’Éducation Sentimentale, como Wagner compôs Tristan. Mas a questão pode ser interpretada de uma outra maneira e significar: como é feito o objeto? Ou seja, independentemente de toda a curiosidade retrospectiva, quais são as estruturas do produto? Da mesma forma que a criança pega um brinquedo mecânico que o fascina e o desmonta para compreender, para saber o que tem dentro, o analista desmonta e monta seu objeto. As duas questões no fundo são legítimas, tanto uma quanto a outra, mesmo que, sem dúvida, a primeira seja mais natural. O essencial é que esta dualidade levanta um problema, por que elas não levarão às mesmas respostas. Assim compreendemos por que é necessário reconhecer que um objeto musical, como qualquer objeto simbólico, tem uma tripla dimensão de existência: existe como resultado de uma estratégia de produção, como objeto presente no mundo, independentemente de suas origens ou de sua função, existe enfim, como fonte de uma estratégia de recepção quando os mais diversos públicos escutam a mesma música. Vimos surgir uma terceira questão – como o ouvinte faz para escutar uma música interpretada? – e é interessante perceber que, paradoxalmente, é a questão que vem ao espírito com menos naturalidade, inclusive aquela que apareceu mais tarde aos especialistas de arte, de literatura e de música. Entretanto, não podemos deixar de fazer essa pergunta, da mesma forma em que o instante de reflexão nos obriga a tomar consciência de tal questão, de uma certa forma, está frente à obra que ele analisa do mesmo lado que o mais ingênuo dos ouvintes: ele está em “posição estésica” e se perceberá que só apresentamos, nestas reflexões sobre a análise musical, algumas variações das páginas que a ela J. J. Nattiez dedicou[3]. Achamos aqui a mesma mescla de ruptura e continuidade que assinalamos mais acima, entre a percepção ingênua e a análise: o analista está em posição estésica – é a parte de continuidade – mas opera no mesmo tempo uma desconexão (decrochange) que o faz passar no campo estésico um outro nível, o da “teoria” e do conhecimento científico. Este último nunca se separa do mundo imediato mas é submisso a um conjunto de regras de funcionamento e de validação que lhe dá um novo status.

A análise se despedaçou: de uma análise, passamos a três. Será que isto é suficiente e deveríamos parar neste caminho de diversidade? De fato, é muito mais complicado e por uma razão muito simples, mas raramente desenvolvida em todas suas conseqüências: o objeto – os objetos simbólicos – é complexo, convém a este ponto de conhecimento, desconfiar dos analistas que decidem, arbitrariamente, trazer de volta o complicado ao simples. As análises musicais são diversas segundo suas finalidades, segundo seus objetos, segundo seus métodos. Segundo suas finalidades, como mostrou a diversidade das análises vistas acima. Insistiremos aqui numa oposição fundamental presente na própria raiz do método analítico. Este coloca em movimento uma dialética incessante – de análise e de síntese – a síntese servindo de justificação e de validação à análise -. O objetivo perseguido pelo analista, sem que ele sempre o admita, é o ideal da última síntese que conseguiria modelar o objeto na sua totalidade. Entretanto, mesmo se o ideal não é realizável, há inúmeras circunstâncias nas quais se faz de conta que o é. Trata-se de casos nos quais o objetivo da análise nos impõe como realizável, quando devemos apresentar – a um auditório, a uma classe – a análise da obra indo além do que sabemos para dar uma idéia da totalidade. Diversidade segundo a finalidade, mas também diversidade segundo objeto, e isto em dois sentidos: porque podemos analisar uma obra em separado, mas também um fragmento de obra ou uma série de obras – e é sem dúvida a série que fornece o mais adequado objeto, sendo ele, melhor fundado para a pesquisa; de outro lado, podemos nos interessar a um aspecto particular da obra, estudá-lo segundo os diferentes parâmetros de sua organização – melodia, harmonia, ritmo, etc. Enfim, as análises são diferentes segundo os métodos e a profissionalização da análise só pode levar a uma multiplicação dos métodos. Três dimensões da análise, mas também a infinita diversidade dos objetivos, dos objetos, dos métodos...

 

Entende-se então, a dificuldade que surge necessariamente: existe alguma coisa como uma verdade das análises? Dentre todas as análises, haveria de proteger alguma que seria a única verdadeira? Ou então temos que nos resignar e aceitar o lema relativista de Pirandello: Cada um com sua verdade? Não entraremos nos problemas epistemológicos e ontológicos colocados pela existência e o status da verdade[4]. Ficaremos com o simples problema de escolha que o analista enfrenta. Temos que escolher, e neste caso, como escolher? Se aceitamos a diversidade das análises cuja geografia esboçamos, a questão se desdobra. Primeira questão: São compatíveis as análises que se diferem segundo suas finalidades e seus objetos? Em direito, a questão não tem nada de dramático, mesmo se a resposta é delicada: trata-se de articular os resultados respeitando a diversidade, fixando às transições que fazem passar de uma finalidade à outra, de um objeto ou de um parâmetro a outro. A segunda questão na verdade é grave: são verdadeiras as análises que têm a mesma finalidade e o mesmo objeto, mas que, a partir de métodos e modelos diferentes, conduzem a resultados incompatíveis ou é possível privilegiar uma porque é a única verdadeira? Pensando bem, infelizmente, é que a situação nunca é tão clara, por causa dos dois lemas sobre os quais se apóiam os hermenêuticos desconstrutivistas: o sentido depende do contexto, e, por outro lado, o contexto é indefinidamente extensível[5]. Quando dois analistas estudam com a mesma finalidade o mesmo objeto, empregando dois métodos diferentes, constata-se que na verdade eles não estudam exatamente o mesmo objeto: eles o recortam de maneira diferente e se apóiam em aspectos parcialmente distintos do contexto no seu sentido mais amplo. Outro caso, quando se trata, em geral, do mesmo objeto, mas sendo ele ambíguo; isto acontece no campo musical, quando uma obra pertence a uma época de transição entre dois sistemas musicais; a aparente incompatibilidade das análises, é aqui somente o reflexo das propriedades particulares do objeto, no qual interferem lógicas ou fragmentos de lógica, distintos; é, sem dúvida, o que atrai os analistas, e esta fascinação para as idades de transição não é estranha à escolha de uma obra de Debussy como teste imposto para uma comparação de análises.

Teríamos, então, que aceitar o slogan relativista: se Deus – se a verdade – não existe, então tudo é permitido? Não, porque em vez de somente constatar – as análises são incomensuráveis e cada uma tem sua verdade – convém proceder a uma nova separação (decrochange) da análise, e, passando dessa para uma meta-análise. Mais simplesmente, um novo caminho se abre, o das comparações entre análises, é este caminho sobre o qual J. J, Nattiez chamou atenção, realçando sua importância desde o início da semiologia da música[6]

A diversidade das análises não é um destino Nietzscheano – Amor fati – cujo decreto devemos aceitar – que esta seja para reclamar ou para se alegrar -, é o ponto de partida de um novo trabalho , de uma nova e apaixonante construção simbólica. Emprestarei, aqui, muito livremente, uma metáfora da geometria diferencial : duas análises diferentes são como mapas que não tem a mesma escala e não descrevem exatamente o mesmo terreno. O que o meta-analista deve tentar fazer – ele sendo um analista como qualquer outro – é projetar estes mapas num atlas, o que permitiria compará-las, confrontá-las, sem deformá-las demais. Começa então, um delicado trabalho de ajustamento, que só pode conduzir a um melhor conhecimento do objeto ; tem que pesar os argumentos, comparar os contextos, validar os resultados, ressaltar os pontos de encontro, as regiões de discordância ; colocando um mapa sobre os resultados, ressaltar os pontos de encontro, as regiões de discordância ; colocando um mapa sobre o outro, teremos um novo mapa, que deixa aparecer uma nova configuração do objeto. Não será o fim da viagem nem a verdade da obra : a análise é interminável mas o trabalho do conhecimento também.

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Tradução da “Associação de Cultura Franco Brasileira Alliance Française de Londrina”.

· Professor da Universidade de Lausanne

[2] Die rationalem und soziologischen grundlagen der musik, 1921 (tradução frandesa a ser lançada em 1990 por Christian Bourgois)

[3] Musicologie générale et sémiologie, Paris. Christian Bourgois, 1987, II parte: “Semiologie du discours de la musique”.

[4] Cf. J. Molino. “Intrerpréter”, in Cl. Reichler, ed. , L’interprétation de textes. Minuit. 1989.

[5] Cf. J. Culler, On Deconstruction, Cornell University Press, 1982.

[6] Cf. J. J. Nattiez, 1. Hirbour-Paquett, “Analise Musicale et Sémiologie: à propôs du prélude de Pellèas”. In Musique en jeu n. 10, 1973, pp.42-69 e a reprise desta argumentação in J. J. Nattiez, Musicologie Générale et Sémiologie. Op. Cit. , pp.213-220

 

© 2002 Adriano Gado